sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O gelato da Dona Maria

Dona Maria, naquela época só Maria, entrou no navio decidida. Sentia que era preciso mudar o clima da sua vida. Estava cansada do Brasil. Era uma moça cheia de sonhos e corria atrás deles com garra. Primeiro tinha chegado ao Rio de Janeiro, vinda de uma família de Cataguases em Minas Gerais. Agora cansada da vida no Rio, onde era sempre uma caipira do interior, buscava algo novo. Europa era perfeito, Maria era uma garota pra frente, expressão que ainda não era usada naqueles meados de 1900 e estava na contra mão do fluxo migratório da época.

Quando apareceu a oportunidade de trabalhar num navio que ia a Europa, não teve dúvidas. Sua mãe nunca teria imaginado que sua filha chegaria tão longe, mas lá estava ela embarcando rumo ao desconhecido. Mal sabia Maria que nesta viagem conheceria o amor da sua vida e descobriria sua missão no mundo: fazer filhos. Desembarcou na Itália já grávida do primeiro dos muitos que viriam a seguir. Em poucos anos já eram 8 crianças. Seu marido vivia dividido entre seus dois amores: a família e o mar. Mas isto não era problema para, agora sim dona, Maria, que era uma criança grande, se divertia tanto com aquelas crianças que logo toda a vizinhança vinha participar da vida daquela família alegre.

A vida não era fácil naquele período pós guerra, mas com o famoso jeitinho brasileiro, Dona Maria fazia milagres. Transmutava tristeza em sorrisos. Pouca comida em banquetes. Comida nenhuma em brincadeira. Era um exemplo naquelas margens do Arno onde vivia numa zona ainda muito rural. Era grata a Deus pela vida que tinha, se encantava de poder ir à missa na vizinha Florença, nunca tinha visto igrejas tão bonitas, tinha uma família com saúde, amável, vizinhos que eram queridos com aquela estrangeira sorridente. Havia encontrado seu lugar no mundo.

Uma data marcante na vida de Dona Maria foi quando ela viu a neve pela primeira vez. A primeira coisa que fez foi rir. Muito e alto. Estava encantada. Sua criatividade tupiniquim deu mil piruetas na cabeça. Seu riso soava alto naquele silêncio branco. Rapidamente estava cercada de crianças, as suas e as da vizinhança. Naquele primeiro dia de neve foi dormir exausta das brincadeiras que haviam inventado com aquele brinquedo novo.

Assim como aquele inverno foi especialmente frio o verão chegou com um calor de rachar mamona. Ninguém na Itália entendia aquela expressão brasileira e Dona Maria achava graça que pudesse existir alguém no mundo que não conhecesse a mamona e aquele momento em que ela estoura ao sol. Passou todo aquele verão sonhando com a neve. Gelada, em contato com a pele suada, uma guerra de bola de neve, deitar sobre ela e olhar o céu azul acima da sua cabeça...mas principalmente sonhava em comê-la. Podia sentir o frio descendo pela garganta, refrescando todo o corpo. Salivava só de pensar.

Começou a dar asas à sua imaginação e quando chegou o inverno novamente, e por sorte nevou naquele ano também, reuniu toda a meninada para aquela invencionice culinária. Numa bacia grande que geralmente usava para levar a roupa para a beira do rio, colocou a neve e açúcar e misturou bem. Começou a dar para todo mundo provar. Era bom, mas faltava alguma coisa. Uma vizinha siciliana que morava naquelas redondezas correu em casa e voltou com 2 limões que espremeram dentro da neve. Perfeito. Era fresco, perfumado, doce e ao mesmo tempo tinha aquele azedinho do limão. Não teve um que não gostasse. Comiam com as mãos, ligeiro, para não congelar os dedos, rindo daquele sabor e sensação novos, deixando escorrer pelo canto da boca e corpo, brincando de jogar um pouco no outro, fazendo daquele momento uma verdadeira celebração gastronômica. Terminaram aquele dia dançando, rindo e sonhando com as mil possibilidades futuras daquele gelo com açúcar e fruta.


Dona Maria não entrou para a história (porque provavelmente nunca existiu) e a disputa da origem do sorvete hoje é acirrada, entre um certo macellaio toscano e um cuoco siciliano, com influências muito antigas vindo tanto do oriente como dos próprios romanos. Mas dizem que em Cataguases foi o primeiro lugar no Brasil a se comer um suco de fruta congelado...

Estou na fase GELATO. Coleciono sabores, histórias, sorveterias. Mais histórias (ou estórias) em breve.




esta pode ter sido a casa da Dona Maria...a foto é do inverno passado

3 comentários:

  1. Cataguases né? Sempre na vanguarda.

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  2. Olá Teresa,

    Hummmm!Por favor não poupe palavras para relatar essa parte da Odisséia!
    Vou salivar, como sempre, em cada parágrafo!rsrsrs
    Paz e muita Luz,sempre!
    Lilian

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